Memorial Técnico
A reabilitação da Casa Caramuru de Ribeirão Preto visa à consolidação dos remanescentes da construção, com respeito máximo pela substância original, restauração da espacialidade perdida e criação de condições para que o bem tombado possa novamente voltar a desempenhar função útil à sociedade, enquanto referência na cidade, importante testemunho histórico, abrigando as atividades propostas, abrindo-se à população para sua visitação, apreciação e fruição, atendendo, enfim, ao interesse público.
CONSOLIDAÇÃO DA RUÍNA
Para tanto, como ação primeira, em caráter emergencial, é fundamental a instalação de proteção adequada para estancar o processo de deterioração por que passa o imóvel. O conjunto deve ser inteiramente recoberto por estrutura leve temporária (tenda de estrutura metálica e lona translúcida), com o intuito de protegê-lo das intempéries e permitir o início dos trabalhos a serem realizados.
A casa deve ser isolada com tapumes e as paredes e colunas da antiga varanda estabilizadas para evitar novos desmoronamentos. O interior da casa deve ser limpo, com a retirada de elementos soltos, em avançado estado de apodrecimento, que comprometam a segurança e estabilidade do restante, como também a vegetação que ali se desenvolve deve ser cuidadosamente retirada.
O levantamento e diagnóstico de patologias devem ser então ser refeitos, com maior precisão e detalhamento, a fim de orientar as medidas a serem tomadas de proteção e consolidação das estruturas remanescentes.
O terreno ao fundo deve ser limpo e transformado em canteiro de obras, tomando-se o cuidado de analisar os escombros antes de sua retirada do local, para identificação e catalogação de possíveis elementos construtivos ainda íntegros que possam eventualmente ser reutilizados.
As duas construções espúrias, ou seja, o estabelecimento comercial na esquina e a fábrica abandonada no lado oposto da casa, devem ser demolidas, atentando-se para o risco que sua proximidade gera, de impacto sobre o bem tombado. Todas as medidas cautelares para evitar maiores danos ao bem tombado devem ser tomadas.
ESTRATÉGIA DE IMPLANTAÇÃO
A partir da liberação da totalidade do terreno envolvendo o bem tombado, são traçadas diretrizes de ordenamento, setorização e reestruturação do lote, considerando o respeito às vistas ideais para apreciação do imóvel, relações de uso e ocupação, topografia e as necessidades impostas pelas novas atividades a serem desenvolvidas.
A análise do programa proposto, em consonância com a análise do potencial do lugar, enquanto importante referência memorial da cidade, revela a possibilidade de destinação da totalidade do imóvel tombado para uso público, como recomendável, para usufruto e deleite da população. Áreas para aglomeração de público e realização de eventos, que demandam espaços mais amplos, em escala incompatível com a da casa, bem como atividades administrativas e de serviços, são abrigadas em nova construção, acomodada no terreno, recuada em relação ao bem cultural e respeitando o seu gabarito de altura.
Assim, a antiga casa, reabilitada, abrigará simbolicamente o Centro de Memória do Desenvolvimento Urbano de Ribeirão Preto, com espaços expositivos, de acervo, pequena biblioteca, sala de leitura, oficinas, loja e café, aberto para a varanda reconstituída, em contato com a rua e com o jardim.
O anexo surge recuado, no limite lateral do lote, como extensão da antiga varanda e do passeio público, pela criação de piso contíguo, que configura uma praça de acesso para acolher confortavelmente, em área coberta, sombreada, grupos maiores de visitantes, como estudantes ou turistas. Este pavimento térreo é destinado a encontros, aulas, palestras, debates ou discussões públicas sobre as questões do patrimônio, ou ainda, simplesmente, ao oportuno convívio social, com vista privilegiada para o bem tombado. O pavimento inferior abriga, num espaço mais reservado, em função de suas necessidades específicas, o Centro de Atendimento Digital, com a necessária infra-estrutura e climatização controlada; e, na área mais ampla e iluminada, o CONPPAC – Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural da cidade, com espaço de trabalho aberto diretamente para o jardim, passando a desfrutar de instalações próprias, adequadas e agradáveis para o exercício de suas funções digna e apropriadamente.
Entre as duas edificações, a Casa Caramuru e seu anexo, um novo acesso público, amplo e generoso, é conformado, conectando o preexistente com o novo, bem como a rua com o jardim, por meio de arquibancada que estabiliza e resolve o desnível do terreno, permitindo a apreciação da bela fachada lateral do bem, novamente descoberta, num movimento exploratório em direção ao interior do lote. Na porção do terreno livre e na esquina, desenham-se jardins que têm a função de refrescar o ar caracteristicamente quente da região, e oferecer prazer contemplativo aos seus usuários.
Intervenção proposta
A aceitação dos remanescentes da Casa Caramuru enquanto ruína impregnada de significação cultural exige abordagem de extrema cautela, seriedade e precisão, no que diz respeito ao trato destas substâncias e às relações de diálogo entre os diferentes elementos a serem articulados. Os critérios de intervenção foram estabelecidos a partir das recomendações contidas nas Cartas Patrimoniais. Tendo em vista a máxima coerência e pertinência da proposta, concessões não são toleradas.
Todos os elementos ainda estruturalmente íntegros do bem tombado serão, quando necessário, estabilizados, consolidados, limpos de impurezas e agentes nocivos para estancar o processo de deterioração em curso, tratados adequadamente a fim de prolongar sua vida útil e mantidos em sua configuração e emprego de origem.
Com a finalidade de tornar possível a reabilitação e nova destinação do imóvel, os elementos faltantes imprescindíveis para seu funcionamento serão reconstituídos, através do uso de materiais e técnicas construtivas atuais, conseqüentemente, resultando em formas, desempenho e linguagem arquitetônica também distintas da situação original.
A fim de proporcionar novamente o travamento das paredes portantes e garantir sua estabilidade, será fixada malha em estrutura metálica sobre o topo da alvenaria de tijolos, deixada aparente para reconhecimento visual. As paredes serão limpas e tratadas, e as antigas pinturas decorativas serão protegidas para evitar o seu desaparecimento. Entretanto, não serão repintadas, apenas preservadas no estado em que se encontram, como ruínas que são.
O antigo piso em assoalho de madeira sobre barroteamento é inexistente na maior parte dos cômodos e, naqueles onde restou, encontra-se extremamente deteriorado, não permitindo reaproveitamento. Será substituído por novo piso em placas de concreto pré-moldado com verniz incolor apoiadas em vigas metálicas perfil “I”. As placas de concreto serão produzidas em formas de madeira utilizando-se as réguas ainda existentes no local. Com isso, o concreto, com sua propriedade moldável, imprimirá a textura do antigo assoalho em sua face, permanecendo como memória do piso original.
Em geral, as janelas originais são compostas de duas folhas cegas em madeira, abrindo para dentro, e duas folhas com montantes em madeira e vidro, abrindo para fora, e bandeira com montantes de madeira e vidro. As portas internas possuíam duas folhas de abrir em madeira e bandeira com montantes de madeira e vidro. A maior parte das janelas e portas encontra-se muito deteriorada com cupim e fungos. Em alguns casos, folhas estão faltando e, em geral, estão sem os vidros. Todas as peças serão retiradas para limpeza, verificação da condição material e estrutural e tratamento. Quando possível, no caso daquelas que ainda conservam-se íntegras, serão reaproveitadas. Se apenas parte dos caixilhos seja passível de ser reuso, os complementos necessários para seu pleno funcionamento serão executados em peças metálicas, evidenciando a intervenção recente. No caso de portas e janelas faltantes, serão inseridos novos elementos de vedação, conforme detalhe desenvolvido. [diagrama]
O antigo forro de madeira encontra-se também totalmente arruinado e será substituído por forro de gesso com afastamento das paredes, explicitando clara leitura do novo elemento inserido. Sobre os três cômodos principais, serão abertos lanternins, proporcionando iluminação e ventilação natural, com o propósito de valorizar as pinturas decorativas, criar espaços agradáveis para os novos usos e, ainda, simbolicamente preservar a memória do período em que a casa permaneceu descoberta, exposta a intempéries.
A nova cobertura, em estrutura metálica, muito leve, discreta e precisa, protege e unifica todo o conjunto, abrigando tanto o bem tombado como seu anexo, sob uma única estrutura, cuidadosamente alinhada com a platibanda da fachada principal da Rua Caramuru.
A varanda ressurge sob o balanço da cobertura, sem a necessidade dos pilaretes de madeira desaparecidos. Aqueles remanescentes nas laterais serão estabilizados e preservados em seu local, como encontrados. Entendida como elo de ligação entre o preexistente e o novo, a varanda conecta as duas edificações e promove um percurso completo pelo conjunto.
O anexo, referenciado no bem tombado, caracteriza-se pela simplicidade, clareza e objetividade em sua organização, forma e execução. Sua base, tectônica, pesada, ligada ao terreno, é executada em concreto, com aberturas para o jardim. O pavimento no nível da rua, da casa, é aberto, leve e transparente, de estrutura metálica e fechamento em vidro.
Todo o conjunto é pensado em função do conforto térmico e da eficiência energética, com a possibilidade de aproveitamento permanente de iluminação e ventilação natural, a fim de atenuar o calor e garantir menor consumo de energia.
O bem cultural, agora restabelecido e entregue à cidade, com toda a sua significação latente, passa a atender a um público mais amplo, recolocando as questões relativas à memória, identidade, reconhecimento preservação e gestão do patrimônio cultural numa escala apropriada, difundindo as questões históricas, culturais, sociais, técnicas e urbanas com a devida importância que o tema exige.